Nota: Para respeitar a privacidade e segurança das participantes, alguns nomes e detalhes foram alterados, conforme solicitado pelas próprias mulheres que compartilharam suas histórias.
Há um mês atrás lancei um formulário para coletar histórias de mulheres no Brasil que enfrentaram perseguições ou censura por expressarem suas opiniões sobre sexo e gênero. O objetivo é transformar essas experiências em um livro que documente os impactos sociais, emocionais e profissionais vividos por essas mulheres. Os relatos revelam um padrão: perda de empregos, rompimento de amizades, exclusão de círculos sociais e acadêmicos. Muitas relatam humilhações públicas, agressões verbais e físicas. Outras optam pelo silêncio, temendo represálias que poderiam comprometer suas carreiras ou até mesmo a integridade física.
O que mais me impressionou foi perceber que as mulheres cujas histórias são mais marcadas pela violência e perseguição não apenas autorizaram o uso de seus nomes, mas também deixaram mensagens incentivando outras mulheres a se posicionarem.
Natália
Em 2013, então mestranda na UNICAMP, Natália fez um comentário em um grupo acadêmico, tentando discutir de forma aberta a presença de mulheres trans em banheiros femininos. “Eu dizia que não me importava com a presença dessas pessoas no banheiro feminino, mas que entendia as mulheres que tinham medo. Um homem poderia se dizer ‘mulher trans’ e assediar uma mulher alegando ser lésbica.” Esse comentário foi suficiente para que seu nome e foto fossem printados e espalhados em redes sociais e grupos dentro da universidade.
O que se seguiu foi uma verdadeira caça. “Pediram meus dados pessoais, o laboratório onde fazia pesquisa e começaram a espalhar que eu havia pixado frases contra pessoas transidentificadas no banheiro. Nunca fiz isso.” Em uma noite, um carro parou em frente à sua casa, com homens gritando para que saísse e buzinando incessantemente.
Natália precisou mudar de endereço e, por fim, abandonar o mestrado. “Minha vida foi destruída. Tentei retomar os estudos, mas o trauma persiste. Sempre que vejo um carro parado na rua, meu coração dispara.”
Fernanda
Durante uma conversa casual em um bar, Fernanda fez uma pergunta que julgava legítima: “Vocês não acham estranho uma mulher trans ganhar o prêmio de melhor atriz? Mulheres nem sempre puderam atuar. Isso não seria um retrocesso para os direitos das mulheres?” A reação foi explosiva. Dois homens se levantaram, gritando que ela era transfóbica, apontando o dedo em seu rosto e a acusando de ser uma TERF.
A partir desse momento, Fernanda passou a ser alvo constante de hostilidades. “Sofri agressões físicas e verbais. Mesmo quando tentei me defender de um homem que me assediava, fui alvo de mais ataques, como se fosse proibido questionar qualquer coisa.” Fernanda precisou abandonar os círculos sociais que frequentava. Hoje, vive isolada, longe das discussões que antes a motivavam. “Eu era apaixonada por debates feministas, mas agora mal consigo confiar nas pessoas.”
Caroline
Em 2020, Caroline criou uma agência de modelos voltada para pessoas fora dos padrões convencionais. Um homem que se identificava como mulher exigiu maior destaque em suas campanhas e, ao ter sua demanda questionada, a acusou de transfobia no Twitter. O caso rapidamente desencadeou uma campanha de ataques contra Caroline. “Tentei conversar com ele, mas ele desligou na minha cara. Depois, comecei a receber ameaças online. Não consegui mais trabalho em Brasília e tentei tirar a minha vida.”
Mesmo após se mudar para São Paulo, a perseguição continuou. O ambiente, que deveria ser acolhedor para uma mulher bissexual como ela, tornou-se hostil. “Hoje, evito espaços LGBTQIA+ por medo. Sou uma mulher bissexual, mas não me sinto segura nesses ambientes.” Caroline, agora desempregada, tenta reconstruir sua vida, mas admite que o medo de represálias ainda é paralisante.
Ruana
Durante a pandemia, Ruana trabalhava em uma escola de período integral, conhecida por promover o protagonismo estudantil. “No Twitter, critiquei o uso do nome social, observando um aumento de meninas lésbicas que se identificavam como meninos, frequentemente com apoio apenas da direção.”
Após participar de um ato em defesa das mulheres no Dia Internacional da Mulher, seu celular foi inundado de mensagens. “Recebi ameaças de morte, vídeos de terrorismo, pessoas sendo decapitadas e mensagens dizendo que eu seria boicotada.” Como consequência, Ruana foi submetida a um processo administrativo no trabalho, acusada de desrespeitar o programa escolar e forçada a se desculpar publicamente. “Minha saúde mental foi para o buraco. Fiquei um ano afastada por licença médica e nunca mais me senti confortável em sala de aula.”
Mesmo após o retorno, Ruana passou a lidar com insinuações constantes de alunos e da direção, até que pediu demissão. Hoje, trabalha como freelancer em outra área e evita qualquer menção pública ao tema da educação.
Sofia
Durante a pandemia, Sofia, recém-mãe, teve a ideia de criar uma companhia de circo formada exclusivamente por mulheres e inscreveu o projeto no edital Retomada Cultural. O projeto foi aprovado, e ela reuniu mulheres com quem já treinava. “Na etapa final, uma integrante sugeriu incluir ‘nossas irmãs trans’. Eu respondi que não fazia sentido, pois já tínhamos uma integrante não binária.”
As pressões, no entanto, continuaram. Em outro edital, a demanda por contratar uma mulher trans foi levantada novamente. “Eu expliquei que o projeto seguia minha visão inclusiva, como já estava.” O conflito escalou para uma tentativa de golpe interno. “As integrantes tentaram trocar as senhas do e-mail e do Instagram da companhia, mas consegui reverter.”
Sofia precisou recorrer a advogados para proteger seu projeto. Apesar de ter concluído o espetáculo, sente que sua carreira estagnou. “Hoje, sigo trabalhando com outras mulheres, mas o trauma ainda pesa. Me sinto insegura em eventos e receosa ao me posicionar.”
Mariana
Em 2018, Mariana fez um comentário no Twitter que parecia óbvio para ela: “Mulheres lésbicas não gostam de pau.” Era uma resposta aos debates sobre a obrigatoriedade de lésbicas se relacionarem com mulheres trans, ou do contrário seriam transfóbicas.. A reação foi imediata e violenta: mensagens de ódio, ameaças e o consequente medo constante de ser atacada fisicamente.
Sem receber apoio de amigas ou espaços onde pudesse desabafar, Mariana se sentiu isolada. “Minhas amigas hétero não entendiam. Fiquei dias mal, só por ter dito algo que parecia tão simples.”
Hoje, como psicóloga que atende mulheres, muitas delas lésbicas, ela ainda carrega o peso daquele episódio. “Tenho medo de me posicionar publicamente, mesmo sabendo o quanto isso importa para quem atendo.” Mariana resume o que vive: “As conversas agora acontecem em círculos fechados, quase sussurradas. O silêncio corrói não só o debate, mas a nossa saúde mental.”
Catarina
Durante a faculdade de Letras, Catarina fez uma postagem no Facebook questionando o uso de hormônios para tratar perturbações mentais. O comentário desencadeou uma perseguição liderada por um militante queer, que a encurralava fisicamente no campus e incentivou uma campanha de assédio virtual, usando seus traumas pessoais como munição.
“Recebi ameaças de morte e fui encorajada a tirar minha própria vida. Mesmo quem discordava não fazia nada, como se a violência fosse justificada.”
Embora tenha se formado, o medo persiste. “Apaguei redes sociais e me afastei do feminismo radical para tentar seguir em frente. O homem que arruinou minha vida nunca sofreu consequências, mesmo após ser acusado de estupro. Para sobreviver, precisei calar o que acredito.”
Ana Paula
Em 2014, Ana Paula foi exposta pela primeira vez após fazer um comentário irônico em uma discussão online. Na época, uma página chamada Travesti Reflexiva viralizava ao rebater críticas de forma agressiva, chegando a mandar uma adolescente “rasgar o cu”. Revoltada com o absurdo, Ana Paula sugeriu, em tom de sátira, a criação de uma página chamada Travesti Afetada.
Esse comentário foi o estopim para uma onda brutal de ataques. Informações pessoais suas foram expostas, incluindo as do seu filho, que tinha menos de dois anos. Seguidores foram incitados a descobrir seu endereço e ameaçaram agredi-la.
Ana Paula enfrentou a situação de cabeça erguida, contando com o apoio de um pequeno grupo de feministas radicais. “Essa foi só a primeira exposição que sofri. Já enfrentei muitas outras desde então, mas sigo resistindo.”
Histórias que Não Podem Ser Caladas
Essas histórias revelam a brutalidade enfrentada por mulheres que ousaram se posicionar. Além de perdas profissionais e acadêmicas, muitas lidaram com ameaças que abalaram profundamente sua saúde mental, segurança e autoconfiança.
A proposta deste projeto é compilar esses relatos em um livro, dando voz às mulheres que tiveram suas experiências apagadas ou silenciadas. Ao documentar essas vivências, busco expor as consequências reais das perseguições e fomentar discussões que levem à transformação dessa realidade.
Se você também tem uma história para contar, o formulário continua aberto. Cada relato é um ato de resistência e coragem, ajudando a iluminar uma realidade que precisa ser enfrentada.
👉 Compartilhe sua história aqui: https://forms.gle/udUYtGrW3bA4uLtE9
♡
Excelente texto, Aleta. Aliás, todos os seus relatos sobre o que você sofreu, muitas vezes calada, tocam diretamente em mim por imaginar você completamente sozinha nesse processo cruel e injusto.
Te acompanho há alguns anos, entre facebook, twitter, instagram,youtube, e me inspira verdadeiramente a sua coragem e disposição de enfrentar uma situação desafiadora como essa com uma vontade invejável. E ainda ajudando outras "canceladas" a também terem voz.
Continue. Continue a fazer a sua arte subversiva, autêntica, provocativa e a colocar a boca no trombone.
Estamos com você. ✨️💫